5 de maio - Mont Saint Michel

Como eu estava muito cansada por conta dos dias anteriores e o meu trem para Pontorson só saía às 9 horas, acordei um pouco mais tarde do que o costume, tomei um café razoável no hotel, que era um pouco pior e um pouco mais caro do que do hotel de Paris. Mas eu não estava preocupada com isso, só conseguia pensar na visita do dia: Mont Saint Michel, um dos pontos altos da minha viagem.
Cheguei um pouco mais cedo na estação de trem para decidir o que fazer com as passagens que estavam faltando comprar ou agendar: Rouen, no dia seguinte, e Vézelay. Por conta dos preços de ida e volta, que eu consultei numa máquina (mas que não podia comprar porque ela só aceitava cartão com chip), acabei decidindo por comprar as passagens de ida e volta de Rouen e deixar Vézelay por conta do Eurail Pass, já que não dava para reservar lugar nesse trem. Deve ter sido por causa da mistura de sono com impaciência mais uma pitada de nervosismo (porque o caixa que vendia as passagens só abria 5 minutos antes da hora do meu trem) que não fiz a escolha mais sábia. Teria sido mais barato do outro jeito. Paciência. Faz parte.
Entrei no trem e em pouco tempo eu estava chegando em Pontorson, que é a cidade mais próxima do Mont Saint Michel, que na verdade é uma ilha, logo o trem não chega até lá. A idéia era pegar um ônibus, cuja tabela de horários eu encontrei na Internet, do lado de fora da estação que me levaria até a ilha e no final do dia me traria de volta. Como tinham me avisado que seria muito provável, estava chovendo. E logo descobri que Pontorson é uma cidade no meio do nada, ela é tão pequena que é difícil chamar a estação de trem de estação. E não tem nada em volta além de casas e algum comércio de primeiras necessidades. Por conta disso, meu plano de deixar minha mochila num armário na estação foi por água abaixo, junto com a chuva que não parava de cair.
Eu não tinha muito tempo para me lamentar ou ficar procurando soluções, porque o tempo entre a chegada do trem e o meu ônibus era de 10 minutos, então o mais importante era encontrar o ponto do dito cujo fantasiada de tartaruga mesmo. Se eu o perdesse teria que aguardar até depois do almoço, o que não era uma boa idéia. Do lado de fora da estação encontrei um microônibus e um cara enorme de gordo do lado, fui perguntar pela condução até o Mont Saint Michel, e era aquilo mesmo, sem número ou indicação na frente mesmo. Depois notei que tinha uma pequena folha de papel que indicava a direção no vidro dianteiro que mal dava para ler.
De qualquer forma, aquele senhor se mostrou muito simpático, começou a me dar dicas, falando dos horários para voltar e que o tempo normalmente era ruim daquele jeito mesmo. Inclusive, ele achava que estava fazendo um dia muito ameno, nem estava chovendo tanto e a temperatura estava agradável (eu estava quase congelando!). No final acabou me perguntado de que região eu era. Ele achou que eu era francesa, veja só! Respondi que era brasileira, e ele ficou impressionado, seu francês é muito bom!
Partimos em direção à magia do Mont Saint Michel, e na verdade essa é uma viagem muito curta, chegamos lá em uns 15 minutos. Mas vou te contar, uma das coisas mais mágicas do mundo é estar na primeira fila de um ônibus daquele, olhando em direção ao mar, cheio de brumas e vir surgindo devagarzinho o Mont Saint Michel. É do jeito que eu imaginava que seria a cena de Morgana levando Artur para Avalon, com a ilha surgindo no meio da neblina. Lindo. De longe aquela ilha já te conquista e te deixa de boca aberta. Fiquei emocionada.
Fui deixada na entrada da ilha, que se manteve inteiramente medieval, de forma que nenhum veículo pode passar e a entrada é igual a de um castelo, com direito a ponte elevadiça e tudo o mais. Por conta da chuva fui antes de mais nada para o Office de Turisme, que fica bem no início da cidade, antes mesmo da ponte, para lá comprar um livreto explicativo e conseguir um mapa mais detalhado e que não ficasse manchado com a chuva. Mais detalhado eles não tinham, e depois entendi o porquê (não tem o que detalhar! É tudo minúsculo mesmo!), mas pelo menos ele continuaria legível com umas gotinhas. Saquei meu poncho do Astérix da mochila e o vesti, deixando a máquina fotográfica bem protegida debaixo dele. Estava pronta para começar a andar!
Aliás, andar no Mont Saint Michel é muito difícil. É tudo tão lindo, e tão antigo, que parece que você entrou numa máquina do tempo mesmo! A cada passo que você dá a vontade de parar e ficar embasbacado é quase incontrolável. Você acaba andando a passo de tartaruga (muito apropriado no meu caso) com o queixo caído. Tudo, absolutamente tudo a sua volta é medieval ou mais antigo, todas as casas, janelas, portas... a rua é estreita e sinuosa, nem que um carro tentasse (apesar de ser proibido) conseguiria passar, tanto que para recolher o lixo no final do dia eles usam um veículo especial, adaptado para o tamanho da única rua, e por ter de ser pequeno, o lixeiro é obrigado a fazer muitas viagens.
Tudo na cidade vive do turismo, as lojas ficam uma do lado da outra, intercaladas com restaurantes e pequenos museus particulares. As únicas coisas diferentes disso são o Office de Turisme, os correios, a polícia e a prefeitura. Tudo em casas como as demais ou instaladas nas torres de vigia das remparts (muralha medieval que circunda as cidades). A Mairie (equivalente a prefeitura), por exemplo, fica num belo arco que liga as construções internas a uma das torres.
Meu plano era subir pela rua principal e descer pela muralha, o que era muito difícil de conseguir, principalmente no início quando há mais escadas ligando a rempart à rua e você fica querendo xeretar cada cantinho daquele museu a céu aberto... Fui subindo com alguma dificuldade, e entrando nas lojas que me seduziam com seus produtos bretões e celtas, até chegar a Église Paroissiale, com uma bela estátua de Joana D'Arc na entrada. É incrível como a igreja tinha poder, uma cidade tão minúscula como aquela não se contentava com o mosteiro localizado no alto do monte, precisava também de uma igreja no meio do caminho. De qualquer forma, a Église é linda, apesar de pequena, e estava em obras. Por conta da manutenção tudo estava deslocado para cima do altar, como numa casa em plena faxina. Uma coisa muito engraçada de se ver.
Continuei subindo... até chegar à última casa/loja da rua e começar a escadaria que leva até a abadia do mosteiro. Haja escada! Ainda bem que você acaba subindo devagar para poder apreciar a arquitetura gótica maravilhosa do lugar. É tudo tão cheio de detalhes, com curvas, gárgulas, torres e janelas de tudo quanto é jeito que você nem sente que está subindo tanto. A entrada já é linda, ah, tudo é lindo, e, claro você tem que pagar para visitar, porque a abadia é quase toda aberta ao público, com direito a guias e audioguias (por uma taxa extra). Você visita tudo lá dentro, passando por salas e corredores labirínticos, jardins internos maravilhosos, e conhecendo todo o mosteiro. É uma coisa muito mágica. Não tem como descrever em palavras, e as fotos dão uma idéia muito pálida do que é aquele lugar. A cripta para mim foi um lugar particularmente emocionante, porque lá eu encontrei uma Madona Negra, era Notre Dame Sous Terre! Eu fiquei surpresa, porque minha viagem estava construída em cima dos lugares que eu sabia possuir esse tipo de Santa, que é um vestígio da adoração da Deusa Ísis, mas não tinha idéia que iria encontrar uma ali! E nesse caso, essa imagem ainda possui uma belíssima conotação, porque o ponto mais alto do mosteiro é uma estátua dourada de Miguel, representando a energia solar e etérea, masculina, e no ponto mais baixo fica a Madona Negra, representando as forças terrenas, uterinas e femininas, com a igreja principal bem no meio do caminho. Lindo! Simbolicamente perfeito!
Saí de lá flutuando, com a cabeça em outro tempo e lugar... na verdade, muito bem localizada no tempo e no lugar, principalmente nesse último! Eu estava bebendo avidamente as imagens com os olhos. Desci pelos remparts, que estão absurdamente bem conservados, e parecem um corredor que limita a cidade, separando a parte habitável do precipício que dá no mar, com vistas lindas da baía. Pena que eu não dei sorte com os horários de mudança da maré nesse dia... elas seriam ou antes de chegar ou depois de ir embora. Mas a vista era bonita assim mesmo, principalmente através das seteiras (espécie de pequenos rasgos na muralha para os defensores usarem arcos e flechas sem o inimigo conseguir acertá-los). Ali daria para ter uma aula fantástica sobre defesa militar na idade média.
Fui descendo e pensando no almoço... quando vi um restaurante de frutos do mar lotado, mas ainda tinha uma mesa vaga. Entrei e fiquei fascinada com as mesas em volta, as pessoas se fartavam de frutos do mar gigantescos! Era ali mesmo que eu comeria. Sentei e pedi o cardápio já na dúvida do que iria pedir. O garçom me entregou e foi embora. Abri com água na boca, procurando onde estavam os frutos do mar. Só tinha crepe. Como assim?, me perguntei. Chamei o senhor que estava me atendendo, eu quero o menu. Não tem mais menu. Como assim, não tem mais menu? Passou das 14h.
Eu quase gritei de raiva, eram 14:05h. Todos a minha volta estavam comendo menu, e eu não podia mais pedir. Quase levantei e fui embora. Mas me segurei, pensando comigo mesma que provavelmente aconteceria a mesma coisa em qualquer outro restaurante que eu fosse, do jeito que estava com fome era melhor ficar por ali mesmo. Tristemente escolhi um crepe, e aproveitei que estava na janela que dava para o mar para me distrair e não ficar olhando para as mesas, e conseqüentemente os pratos, dos outros. O crepe tava até gostoso, mas a frustração estava estragando ele.
Depois do crepe pedi um belo sorvete pra dar um ânimo no meu humor, que estava perigando ficar ruim. Mas foi só sair do restaurante e olhar novamente a vista das remparts que fiquei feliz novamente! Desci vagarosamente as rampas e escadas, absorvendo o máximo de detalhes possível, até chegar novamente na entrada da cidade. Como ainda tinha umas duas horas até o ônibus chegar, resolvi testar o meu auto-controle nas lojas. Aquilo é uma loucura, devia ser proibido. Se eu tivesse dinheiro e um modo de carregar, teria comprado quilos de bugigangas, lá tem de tudo: lembranças medievais, do Senhor dos Anéis (imitações em prata, ouro e esmalte do figurino do filme), dos Piratas do Caribe (armas principalmente), uma quantidade incontável de espadas, punhais, facas e muita, muita prata com motivos celtas/bretões. É interessante reparar pelos souvenires que a velha disputa de onde fica o Monte Saint Michel ainda é muito viva: Bretanha ou Normandia? Na dúvida, tem souvenires dos dois! E pra coroar isso tudo ainda tem o artesanato de Quimper, que uma louça linda de morrer... só que é tão cara que custa além dos olhos da cara, mais um braço e uma perna.
Numa das lojas aconteceu um fato engraçado, como eu estava com o meu poncho uma das vendedoras veio me sacanear: e aí, foi no Parque Astérix? E, deixe-me adivinhar, estava chovendo, né? Que sorte a sua, hein? Em outra loja vi uma vendedora japonesa, que estava lá só para atender os japoneses, é claro. São tantos que eles estão contratando vendedores especializados!
No final das contas, me surpreendi: comprei só 2 pares de brincos, um anel, um pin para minha coleção (que viria a fazer sucesso durante a viagem) e um gato de pedra com motivos celtas. Não ficou pesado, nem na mochila nem no bolso, por isso acredito que meu teste de auto-controle foi um sucesso!
Depois de umas duas voltas pelas lojas, olhei pro relógio e faltava uns 10 minutos pro ônibus chegar. Resolvi esperar por ele sentada, pois já estava cansada, e nunca vi um ônibus ser tão pontual. E, claro, era o mesmo motorista. Ainda tive que esperar um pouco pelo trem na estação absolutamente deserta e quando ele chegou, escolhi um lugar longe de todos e fui dormindo até Rennes, onde devia fazer uma conexão.
Quando o trem para Paris chegou, fui procurar minha poltrona, mas ela estava ocupada. Achei estranho e fui conversar com a garota que estava sentada ali, que me explicou que estava numa excursão com uns amigos e perguntou se eu não me incomodava. Respondi que não, que só não queria ficar mudando de poltrona o tempo todo, então queria saber onde era o lugar dela para trocarmos. Acabou sendo tudo ótimo, pois fiquei longe da bagunça da excursão, podendo tirar mais uma soneca, e depois comer o meu jantar em paz. Ah, sim, por conta da hora resolvi jantar no trem! Minha primeira experiência gastronômica sobre os trilhos!
É bem interessante o esquema, tem um vagão/bar que vende pequenas refeições: sanduíches, saladas, iogurte e alguns pratos quentes pequenos, além de bebidas. Você chega lá, pede e escolhe se quer comer de pé numa bancada ali mesmo ou se leva a comida para o seu lugar, que obviamente tem uma mesinha até bem espaçosa. Eu escolhi minha poltrona, pois não agüentava mais ficar de pé. Só tem um problema: o trem balança mais do que parece, o que te obriga e tomar conta das coisas o tempo todo, principalmente das garrafas, que escorregam enlouquecidamente pela mesa e viram para tudo que é lado.
Quando faltava uns 5 minutos para chegarmos a Paris me dirigi para a porta, e já tinha um monte de gente esperando lá. Foi então que descobri que nosso trem estava atrasado, demoraria mais uns 20 minutos para chegarmos. Era o meu primeiro trem atrasado, numa longa sucessão ainda por vir. Durante a espera um francês veio puxar papo, ele estava ansioso porque tinha um vôo marcado para Madagascar e não podia se atrasar. Foi uma conversa muito esquisita, porque ele só sabia se vangloriar de que não dormia a noite, já que trabalhava como marinheiro e por isso viajaria no meio da noite, só para não dormir. Eu disse para ele que isso não fazia sentido, mas ele entendeu como um elogio. Eu desisti e o deixei falar o que quisesse, respondendo apenas com a-hã.
Chegando em Paris, fiquei feliz de descobrir que o metrô ainda funcionava, o que facilitava a minha volta para o hotel. Quando cheguei lá já era mais de 11h da noite. Peguei minha mala na recepção e fui carregando-a sozinha para o caixão que funcionava como elevador. Tinha um hóspede esperando, mas que gentilmente me cedeu o lugar por conta da mala. Agradeci muito e fui na frente. Chegando no meu andar descobri que o tal hóspede na verdade era meu vizinho. Nos desejamos boa noite e eu fui conhecer meu novo quarto.
Ele era pequeno, muito menor do que o anterior, que eu dividi com o Caike, mas pelo menos o telefone funcionava direito. Eu também não tinha tempo para ficar reclamando. Dei um jeito de encaixar minha mala perto da janela, e fui lavar roupa. Só que era tanta coisa para lavar que quando deu meia-noite e meia o meu vizinho tão simpático veio reclamar do barulho. Pedi desculpas e deixei para lavar o resto no dia seguinte, se sobrasse tempo.

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