3 de maio - o "último" dia

Esse seria o último dia do Caike comigo na viagem, na madrugada ele pegaria o translado para o aeroporto e eu continuaria a dormir até a manhã do dia seguinte, continuando a viagem pela França. Por conta do futuro cansaço com as malas que seriam fechadas à noite e da já certa falta de sono, resolvemos que era melhor relaxar um pouco e dormir até mais tarde para descansar o máximo possível, sem perder tempo demais.
Dessa forma, acordamos razoavelmente tarde, e tomamos o café no hotel mesmo, com toda a calma do mundo. Pegamos o metrô e fomos visitar uma igreja que me recomendaram muitíssimo, a Madeleine. Essa construção, de arquitetura neoclássica, demorou para conseguir sair do papel. Inicialmente ela seria construída em meados do século XVIII, para substituir uma igreja consagrada à Madalena que, para variar, tinha se tornado pequena demais para a população da região. Porém, com o advento da revolução francesa, péssima época para construir igrejas, sua construção foi embargada, o terreno vendido, e muitas peças vendidas para artesãos. Mais tarde, Napoleão escolheu a localização para erigir um templo às forças armadas francesas, e escolheu o trabalho de um artista que se baseava nas antigas construções gregas e romanas, porém o templo não chegou a ser terminado por falta de dinheiro. Após a retomada do poder pelos monarquistas, a idéia de construir uma igreja voltou à tona, e depois de muitas idas e vindas com direito a inúmeras adaptações de projeto, em meados do século XIX, a Madeleine foi terminada e consagrada.


Hoje é uma das igrejas mais bonitas da cidade, bem mais baixa que as demais catedrais, pelo menos por fora, com muitas estátuas de santos por todo o lado de fora da igreja, alternando com as colunas neoclássicas. Tudo lotado de detalhes, de forma que não deixa nada a dever às construções góticas. Sua porta principal possui os sete pecados capitais escavados na madeira, e em cima há uma enorme cruz, que à noite se pode ver de uma grande distância por conta da iluminação vermelha.Por dentro a igreja também é neoclássica, lembrando muito o panteão, cheia de colunas e o teto repleto de afrescos. O altar principal é lindo de morrer, com uma lindíssima imagem da Ascenção de Madalena. Inclusive, em termos de estatuária, essa igreja é das mais bonitas que já vi, e também das mais controversas. Logo na entrada há uma coroação da Virgem que você jura de pé junto que é uma cena de casamento, com direito a alianças e tudo, e pelas longas madeixas de nossa senhora ela parece mais Madalena mesmo. Mas essa é outra discussão.
Até a música é diferente na Sainte Madeleine, o órgão aqui toca composições mais alegres e vivas. Posso dizer que foi uma das igrejas que mais me agradou em toda a viagem, com sua atmosfera calma sem ser austera, além de ser razoavelmente iluminada, com um destaque quase que desproporcional para o altar e, por consequência, a figura de Madalena. Aliás, a primeira visão desse altar é de tirar o fôlego, de tão bonita.De lá saímos rejuvenescidos pela beleza da igreja, para novamente pegar o metrô até o bairro da boemia de Paris e cenário do último filme francês de grande sucesso, Amélie Poulain: Montmartre.Descendo na estação, pegamos a primeira saída que vimos, e fiquei sabendo depois, a pior alternativa possível. Montmartre é um morro, o único da cidade, e o metrô continua sempre no mesmo nível. Resultado, pegamos uma escada para sair que não terminava nunca, e vimos vários turistas, e até mesmo parisienses, parando no meio do caminho para descansar, porque era muito difícil subir aquilo tudo de uma vez só, haja fôlego!
Chegando na superfície, pelo menos fomos recompensados pela vista da Place des Abesses, uma pracinha muito linda e bem calma, de cara para uma igreja com fachada art nouveau: Saint-Jean l'Evangéliste, também conhecida como Saint-Jean-de-Montmartre. Paramos para dar uma olhadinha nela, é claro. Essa construção, projetada por um discípulo do arquiteto responsável pela restauração da Notre-Dame, foi erguida durante a virada do século XIX para o XX, com muita influência art nouveau, é uma das raríssimas igrejas consideradas inovadoras datadas de antes da primeira guerra mundial. E ela é muito bonitinha mesmo, valendo uma visita quando se estiver passeando pelo bairro.
Nossa idéia era seguir um roteiro do meu guia de Paris, uma caminhada de 90 minutos por Montmartre (jamais acredite no tempo dessas caminhadas, sempre demora muito mais do que diz o guia). O problema é que a principal atração do quartier não estava no roteiro, a Sacré Coeur, e ainda queríamos procurar uma mala para o Caike poder voltar com tudo o que havíamos comprado até então, portanto resolvemos fazer um desvio nos nossos planos e ver primeiro o cartão postal do bairro, a igreja.
Se tínhamos achado a Torre Eiffel e o Trocadéro uma farofada, era simplesmente porque ainda não tínhamos visitado Montmartre. A entrada para parque onde fica a igreja é lotada de camelôs, e de pessoas tentando tirar dinheiro dos turistas tentando mostrar "truques". O negócio é fingir que nem tá vendo nada e passar batido, no máximo pedindo um "pardon" e um "non, merci". Passando da barreira humana, você chega no próximo obstáculo: as escadas. São muitas e parecem intransponíveis. Mas acredite, não é tão difícil quanto parece, e qualquer coisa você pode se divertir escolhendo qual delas pegar (tem 2 centrais e mais 2 laterais, sendo que as laterais têm sombra!) e mudando de escada nos platôs, de onde se tem uma bela vista da cidade, que vai melhorando conforme se sobe.
Nos platôs também tem mais camelô, só que um pouco menos concentrado (o espaço é maior), e dessa vez artistas de rua: estátuas vivas, palhaços, malabaristas, músicos... tem pra todo gosto. Ainda mais no final de semana, que foi quando fizemos nossa visita. E no gramado novamente se pode ver os parisienses no seu dia a dia de verão: todos esparramados na grama, lendo, ou batendo papo em rodinhas regadas a comida e a vinho... só que como aqui o terreno é inclinado, faz menos sucesso que o campo de marte e outros parques da cidade, como vim a descobrir mais tarde.
Fomos subindo as escadas debaixo de um sol maravilhosamente quente, do qual eu estava sentindo falta por conta dos dias anteriores, escolhendo as laterais por conta da sombra proporcionada pelas plantas. Fizemos uma parada estratégica no platô anterior à igreja, que tem belíssimas fontes de água (usadas como piscina pelas crianças), onde sentamos e descansamos apreciando a bela vista da cidade. Obviamente aproveitamos a ocasião para tirar um monte de fotos, inclusive muitas tentativas frustadas de tirar auto-retratos com Paris ao fundo (minha técnica de auto-retrato evoluiu muito durante a viagem). E quando nos demos por satisfeitos, fomos enfrentar a fila para entrar na Sacré Coeur.
Essa igreja na verdade é uma basílica, construída por conta de um decreto de 1873 para expiar os pecados dos communards (participantes da comuna de Paris) derrotados em 1871. Sua construção demorou quase 40 anos para ser terminada, e ela só foi consagrada depois da primeira guerra mundial. Em forma de cruz grega, suas cúpulas lembram muito as de uma mesquita por conta do formato, e ela é muito branca por fora por conta da pedra utilizada, o que a deixa lindíssima num dia claro de céu azul, como o que demos a sorte de pegar. Porém ela é cheia de restrições, mais do que a Notre-Dame! É proibido tirar fotos do interior da igreja, mesmo sem flash, com direito a seguranças expulsando os turistas que quebram a regra! O que, depois pensando bem, nem é tão terrível assim, visto que como a grande catedral, essa basílica é muito mais bonita por fora do que por dentro. Deve ser karma das igrejas famosas de Paris. A única coisa digna de nota no interior da Sacré Coeur é o mosaico da cúpula principal, que chama atenção pelo seu tamanho, não necessariamente pela sua beleza.
Quando conseguimos entrar estava começando uma missa. Resolvemos sentar e ver, eu estava na esperança de ouvir uma missa polifônica ou um canto gregoriano... mas ao invés disso, era só o padre falando mesmo, as pessoas se acotovelando para visitar a igreja e turistas sendo expulsos por tirar fotos. Para piorar do meu lado sentou um autêntico francês... com um cheiro que perfume nenhum conseguia disfarçar. Esperamos até o máximo da nossa paciência para ver se tinha algum tipo de canto, e quando percebemos que ia ser só aquilo mesmo, discretamente nos levantamos e fomos embora.Decretamos então que era hora de começarmos nosso walking tour. Fomos direto para uma das maiores ruas do quartier, a Boulevard de Rochechouart, onde, logo percebemos, é a rua da Alfândega de Paris. Era ali mesmo que acharíamos a mala por um preço em conta. Entramos numa loja e perguntamos pela marca que o Caike queria, Samsonite. Não tinha. Continuamos andando e achamos outra loja, que também não tinha, porém a vendedora foi muito simpática e nos indicou um lugar que ela sabia que teria. Lá fomos nós atrás da tal loja, que conseguimos achar! E tinha a maior cara de loja do Saara... só que os produtos pareciam verdadeiros. Fomos para o segundo andar, onde ficavam os modelos Samsonite, e fomos atendidos por um francês/argelino muito simpático que arranhava português. Acabamos por comprar 2 malas, uma para o Caike, bem parecida com a que eu estava levando na viagem, só que de melhor qualidade, e outra para mim, só que dessas tipo sacolão, que eu queria guardar dentro da minha mala, porque meus instintos diziam que eu iria precisar de uma. Guardamos uma dentro da outra e partimos para conhecer as ladeiras do bairro mais boêmio de Paris.
Pela nossa localização começamos o tour no sentido contrário e do meio do caminho, o que complicou um bocado na hora da gente achar as ruas para entrar, mas conseguimos nos virar e ainda antes do almoço vimos o prédio onde funcionou o famoso Chat Noir (o teatro de sombras), o cinema mais antigo de Paris (e provavelmente do mundo, que hoje abriga um teatro), o primeiro cabaré de cancã do quartier, e uma das casas onde viveu Van Gogh! Diga-se de passagem, o holandês me perseguiu pela Europa... mas não vou adiantar a viagem.
Fomos seguindo o roteiro até o seu início, a Place Pigalle, descrita como um lugar animadíssimo! É realmente bastante cheia... é uma praça bem grande, com um sem número de restaurantes e mais algumas casas de "show", leia-se strip tease. Como estávamos carregando a mala a tiracolo (na verdade era o Caike que carregava a mala no ombro), achamos que ali nós teríamos um boa diversidade de lugares para escolher onde almoçar. Entramos num bistrô cujo menu na porta parecia atraente e sentamos. Entregaram o menu oficial e começamos e escolher... logo percebi que eu não estava gostando muito daquelas opções... puro mal-humor de cansaço, mas precisava descontar em algo, né? O menu não tão interessante era a melhor vítima. Então levantamos e saímos.
Fomos dando a volta pela praça e decidimos tentar novamente num bistrô com um jeitão bem alternativo, parecendo uma mistura improvável de comida francesa com indiana, um leve toque árabe e uns pratos bem orientais (chineses mesmo). Pra completar a bagunça cultural e fazer uma boa demonstração do que é a globalização estava tocando Seu Jorge no fundo, o que foi ótimo... eu já estava com saudade da música brasileira.
Enfim, era ali mesmo que mataríamos a fome, pegamos o menu com o garçon e foi aí que aconteceu o único incidente esquisito com garçons na França: ele nos entregou o menu com a comida e a carta de vinhos, mas nós estávamos cansados e não queríamos beber nada alcoólico, então eu pedi a ele o menu com as outras bebidas. Inconformado que alguém pudesse almoçar bebendo algo que não fosse vinho, ele mal educadamente me perguntou "afinal o que vocês querem, comer ou beber?", no que eu tive que responder controlando o meu mau humor com unhas e dentes que iríamos comer sim, mas não beberíamos nada com álcool. Ele olhou estranho, mas trouxe o outro menu. Pedimos pratos de massa tipo wok (é a panela usada para fazer yaksoba), eu pedi um suco de laranja de verdade (laranjas prensadas em francês) e o Caike pediu um capucchino gelado. Depois que já estava tudo resolvido o garçon não incomodou mais, só nos perguntou se queríamos sobremesa e ouvindo a negativa, perguntou se queríamos a conta. No meio desse processo ele levou um esporro do gerente, porque não tinha servido a nossa mesa de pão e água, coisa que outro garçon acabou por fazer atirando as coisas na mesa.
Por conta da localização da praça e pela experiência com o caminho inverso do guia, decidimos que era melhor fazer o tour pela direção certa, então andamos novamente pela Boulevard de Rochechouart e subimos novamente as ladeiras que dão na Sacré Coeur, mas dessa vez para encontrar a Montmartre bucólica e histórica. É nessa parte do bairro que se encontram os antigos e atuais estúdios dos artistas, construídos do século XIX até o início do século XX. Um dos primeiros que vimos foi de Picasso, que infelizmente pegou fogo, mas como era um conjunto de ateliers, ainda tem a entrada intacta. Esse "conjunto artístico-habitacional" fica no alto de uma escada que também proporciona uma bela vista, ponto imperdível.
Dali fomos seguindo o nosso circuito e novamente encontramos a farofada na place du Tertre, onde existe uma imensidade de bares disputando cada centímetro disponível, e as pessoas disputam as moléculas de oxigênio. Ali perto fica o museu do Montmartre, que parece bem pequeno por fora, além de ter um aspecto mambembe, que combina com o quartier. Como não parecia tão interessante assim, passamos direto. Também passamos em frente a um museu com muita cara de improvisado do Salvador Dali, que parecia menor ainda e estava com uma fila enorme na porta. Passamos direto também.
Dali seguimos para baixo, numa rua onde, dizia o guia, tinha o belo vinhedo de Montmartre, que nem é belo nem cara de vinhedo tem. Mas as casas em volta e a vista valem o passeio. A partir desse ponto até os antigos moinhos do bairro (existem ainda 2 para contar a história da época que o morro era apenas plantações, pintadas por, adivinha, Van Gogh), é cheio de ateliers de artistas vivos (porque Renoir, Van Gogh e Picasso são muito legais mas não produzem nada há anos), e chegamos a ver um conhecido dos pps da internet! Aquele que faz rostos com desenhos de livros abertos, capas e lombadas... inclusive ele estava lá dentro, lendo um livro.
No mesmo caminho passamos pela casa onde viveu a cantora Dalida, nascida no Egito e de origem italiana, famosérrima no meio da música árabe (foi a precursora na Europa cantando em francês, árabe, espanhol, italiano, inglês...) e da chanson française, mas cuja vida foi cheia de altos e baixos, o que a levou a se jogar da janela de sua casa em Montmartre em 1987. Numa pequena praça bem perto dessa casa há um belíssimo busto em sua homenagem, onde, é claro, tirei uma foto.
A partir daí é só descida até a rua do Moulin Rouge, que só havíamos visto à noite e onde tiramos fotos dessa vez, que é entupida de sex shops e de casas de "show" provavelmente mais quentes do que o moinho vermelho. Assim, terminamos o nosso tour pela boemia e fomos providenciar o jantar. Como o bairro é mais residencial achamos facilmente uma padaria, onde compramos uma bisnaga enorme, e uma loja de queijos. Como eu adoro queijo mofado e o Caike gosta de Camembert e de Brie, achamos que dava pra arriscar alguns queijos mais franceses que fossem mais "frescos". Entramos e escolhemos uns 3 tipos de queijo bem branquinhos... porque tinha uns que simplesmente não davam, de tão pretos ou verdes ou azuis, e fomos para a nossa sessão mala.
Chegando no hotel, fiz uma aposta com o Caike, que eu obviamente ganhei, de que conseguiria colocar tudo na mala nova dele. Com tudo fechado analisamos o peso dela e percebemos que não ia dar certo, porque era óbvio que ela tinha mais do que os 20 quilos que a Ibéria permitia. Então, dividimos o peso na mala nova e na mochila de camping velha. Aí foi a minha vez de fazer mala, que ficou bem razoável, pois a idéia era fazer uma mochila pequena para dormir apenas um dia fora e eu deixaria o resto das coisas no hotel mesmo, para onde eu voltaria e ficaria num quarto single.
Descemos e pagamos a conta, porque não daria pra fazer isso às 5 horas da manhã, quando o Caike iria pro aeroporto. Depois fomos jantar! Abrimos os queijos... e o quarto se tornou insuportavelmente fedorento. O cheiro era tão forte que o Caike nem conseguiu experimenta-los, ficando a tarefa de acabar com eles pra mim. Fiz um enorme esforço e consegui comer um pouco menos da metade, junto com o vinho. Deixamos tudo pronto para a correria da despedida e fomos dormir o pouco que dava.

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