7 de maio - Chartres

Acordei absurdamente cedo, para conseguir fechar a mala, pagar a conta do hotel (onde sabiamente deixei as malas, sem custos extras) e ainda conseguir pegar o trem às 8:15h. Nem sei pra quê me esforcei tanto, os atrasos nos trens estavam ficando frequentes e esse saiu quase meia hora mais tarde. Será que os franceses não são tão pontuais assim mesmo ou é um poder dos brasileiros fazerem tudo atrasar? Pelo menos a viagem foi tranquila, tão tranquila que ninguém checou o meu bilhete.

De qualquer forma, por causa do trem, cheguei atrasada para as minhas programações de visitas guiadas, incluindo o temeroso trenzinho (que em Chartres se chama Chartrains, um trocadilho muito fofo!). Porém, para compensar o azar, encontrei uma senhora e um casal de brasileiros muito simpáticos, que estavam completamente perdidos na estação. Eles acabaram por me acompanhar até o ofício de turismo da cidade, para pegarmos mapas.

Fomos atendidos por um atendente gay muito solícito, que nos explicou cada pedacinho do mapa (e eu fui traduzindo para os outros, que não falavam uma palavra de francês). Para variar, o ofício daqui é muito bom, com um mapa muito legal, que tem um circuito turístico gratuito que me pareceu muito bom (o que não é tão comum, como pude perceber até agora).

Agora "armados", fomos para a Catedral, que é realmente deslumbrante. Não consigo pensar em outro adjetivo, ela é tão linda que acabei por passar o dia inteiro explorando-a. Aviso logo que é preciso muito cuidado e esforço para não fazer isso, pois os vitrais e as esculturas externas são hipnotizantes.




Para variar, a Catedral de Chartres, datada do século XIII, foi construída em cima de outra igreja, de estilo romano, destruída num incêndio em 1194, do qual sobreviveu apenas a cripta e a fachada ocidental, que foi construída em cima de uma outra igreja, mais antiga, que foi construída em cima de outra, que foi construída em cima de outra, que, por fim, foi construída em cima de um poço pré-céltico, que, dizem, ficava dentro de uma gruta usada como santuário. Ufa! Detalhe estarrecedor, o poço ainda está lá. Mas vamos chegar nessa parte da minha visita mais tarde. O edifício atual, é considerado uma das obras primas da arquitetura gótica e não dá pra perder, numa visita rápida: o vitral mais famoso da Catedral, Nossa Senhora do Vitral (no original Notre Dame de la Belle Virrière); a estátua de Notre Dame du Pillier (Nossa Senhora do Pilar); o labirinto inscrito no chão da nave; um relógio de sol na fachada e mais um relógio de sol (pelo menos os dois parecem relógios) no portal de Sainte Anne. Se sobrar tempo: a cripta (imperdível para quem se interessa pela cultura celta ou madonas negras) e a torre (proibida para quem tem medo de altura ou coração fraco).




Quando percebi eu estava há uma hora dentro da igreja, e ainda não tinha nem tentado descobrir os detalhes e horários do passeio para a cripta (eu não podia deixar de ver a Madona Negra de Chartres, nem por decreto!), nem visto a torre, nem nada. E os brasileiros tinham sumido.

Acabei conseguindo pegar o passeio de 11h para a cripta, que, adivinha, atrasou e começou só às 11:15h. Mas valeu... a cripta de Chartres é um lugar mágico! Feita de resquícios da Catedral antiga, romana, ela possui 2 vitrais lindos... sendo um deles de Maria Madalena. E de quebra dá para visitar o poço celta e ver resquícios de edifícios anteriores. É lá também que se encontram a Madona Negra e uma relíquia da Virgem (um véu branco, que já rodou muito e sobreviveu ao incêndio do século XII). Nessa cripta, onde fica a Notre Dame Sous Terre ainda tem missa todos os dias às 11:45h.

É tanta coisa pra falar da cripta nem sei por onde começar... para resumir: o poço celta, que é datado de antes de cristo, tem 35m de profundidade (aproximadamente), é redondo em cima, mas no fundo é um quadrado perfeito, sendo que cada lado está voltado para um ponto cardeal, e o quadrado está perfeitamente inscrito no círculo. Uma coisa fabulosa!

A Notre Dame Sous Terre é uma madona negra, que, nesse caso, é "descendente" de uma divindade celta, o que explica a sua característica singular de ter os olhos fechados. A estátua não é original, infelizmente, mas é linda! Conferindo à cripta uma atmosfera fantástica... é um tipo de santuário que deve ser visitado, e onde acender uma vela é uma experiência muito gratificante.

Saindo da cripta, na hora da missa, eu estava morrendo de fome, por conta do parco café da manhã (pão com chocolate e castanhas, além de um pouco de pistache). O problema é que ainda era muito cedo e não tinha quase nada aberto. Resolvi começar o circuito turístico a pé pela cidade, mas desisti quando percebi que se me afastasse da catedral, não teria certeza de encontrar lugares para comer um "menu" (entrada, prato principal e sobremesa), além de que eu ainda queria subir a torre! Então, achei que era melhor apenas conhecer os entornos da Catedral. E foi a melhor coisa que eu fiz! Atrás da igreja, onde hoje fica o museu de belas artes, tem um jardim maravilhoso com uma vista estonteante da cidade, que tem mesmo cara de cidade do interior (em padrões europeus, faz favor).

Depois de alimentar ainda mais a vista, fui encher o estômago, num restaurante com o maior jeitão de chique, com chef a caráter e tudo esperando os clientes na porta. Mas o preço era bem moderado, e tinha a vantagem de poder comendo apreciando a fachada do portal de Sainte Anne. Acabei por almoçar uma entrada de camarão, um peixe maravilhoso, feito dentro de papel alumínio, com cenouras e abobrinhas para acompanhar. O prato principal estava meio apimentado demais pro meu gosto, mas o delicioso chá "bourbon" que pedi ajudou muito. De sobremesa escolhi na sorte uma "torta bom cristão" divina, feita de nozes e maçã (ou seria pêra?), a especialidade (comprovada!) da casa.

Apesar de tudo estar maravilhoso, a comida e a vista, durante o almoço acabei presenciando algo que me deixou muito triste e chocada: entre um grupo e outro de estudantes que visitava a igreja guiados por professores, apareceram 5 meninas, adolescentes na verdade, que chegou fazendo o maior estardalhaço, sentaram na porta (literalmente, não era na escada, era na porta mesmo, atrapalhando as pessoas) e começaram a falar alto (gritar é mais próximo da realidade) e a ouvir rock pesado muito alto. Pareciam crianças testando os limites, sabe? E riam alto dos turistas que passavam e olhavam espantados para aquela cena grotesca. Daí, elas resolveram almoçar ali mesmo, tiraram sanduíches das mochilas e depois ainda fizeram guerra de comida. Isso mesmo: pedaços de pão pra tudo que é lado, emporcalhando tudo. Depois que viram a confusão que deixaram, elas levantaram e foram embora, deixando toda a sujeira.

Nesse momento, os cozinheiros e garçons do restaurante onde eu estava saíram em perseguição às adolescentes, que fugiram e só uma foi pega. Ela levou um esporro danado, mas a safada ficou dizendo que não tinha sido ela. Uma cena vergonhosa, realmente. O chef é que acabou juntando o lixo todo e jogou fora depois.

Após toda essa emoção, fui subir a torre! Aí sim eu descobri o que é emoção! Não tenho medo de altura, mas sério, tive vertigens e morri de medo lá em cima. Mas valeu a pena! A vista da cidade de lá é inigualável (até porque a torre é o ponto mais alto da cidade, já que a Catedral é o edifício mais alto e fica numa elevação), e ainda tem as gárgulas e outras esculturas que você consegue ver de pertinho... fora a vista da Catedral por cima, que é no mínimo interessante! Mas para ver isso tudo você precisa superar o medo, não ligar pro vento forte que bate lá no alto, e o mais importante, não ligar para os buracos (pequenos) e rachaduras. Evite pensar na idade da torre, ajuda muito também. Conversar com as outras pessoas no meio do caminho, como o casal da Flórida e outro casal brasileiro que encontrei, ajuda a manter a perspectiva, e deixa o aperto da escada em caracol mais alegre e divertido. A torre tem diversos pontos de parada até o topo, vale a pena sair da escada e visitar todos eles, ainda mais porque eles te preparam para o ponto final. No topo da torre, tem uma espécie de vigia, e você consegue contornar toda a torre, se tiver coragem. Eu não sei como consegui, mas dei a volta completa e desci renovada pela adrenalina.

E preocupada com a hora. Quando cheguei no chão, era mais de 15h e o meu trem saía às 17h, e eu não tinha visto nada da cidade! Fui direto para o trenzinho, fazer uma visita relâmpago. E dessa vez eu aprovei a viagem, acho que é mesmo melhor pegar esses trenzinhos sem ter visto nada da cidade ainda. Além de que dessa vez o próprio condutor ia fazendo os comentários, sempre com piadinhas no meio do caminho. Foi muito divertido! E eu fiquei meio chateada com o meu tempo escasso para conhecer a cidade... Chartres é linda... definitivamente não é só pra ver a Catedral. Fiquei devendo uma visita de verdade.

Na reta final do dia, resolvi fazer visitas estilo "fast food" em duas outras igrejas da cidade, St Aignan e St Pierre. Para minha felicidade, St Aignan ficava bem no meio do caminho para St Pierre, o que ajudou muito! Ela é discreta por fora, mas lindíssima por dentro, toda coberta de afrescos, e muito iluminada! Dei a sorte de pegar uma aula de órgão dentro da igreja, um senhor ensinava uma menina como tocar o instrumento... só não fiquei mais para apreciar por causa da hora, meu tempo estava acabando...

E ainda tinha ver St Pierre, que é muito interessante, mas não tão bonita quanto St Aignan, pois é totalmente lisa por dentro, com menos coisas para se ver. Porém, tem uma curiosidade fantástica: é uma das raras igrejas construídas dentro da terra, para você entrar é preciso descer as escadas, e não subir.

Já nervosa por causa da hora, saí da igreja com o mapa na mão, e fui correndo pela cidade até chegar na estação, entrei no trem e me sentei. Comecei a verificar se estava tudo certo no meu eurailpass, quando topo com um outro casal muito simpático, de Ohio (nunca imaginei que tivessem tantos americanos visitando a França...). Achei muito fofo, eles acharam que eu era uma estudante mochileira... principalmente por causa dos pins que eu estava colecionando durante a viagem, e o seu volume já estava começando a chamar atenção, e fazendo sucesso!

Foi então que eu olhei bem na descrição do trem e percebi que tinha pego o trem errado! Esse era 20 minutos mais cedo do que eu tinha planejado...

O que no final das contas foi bom, pois chegando em Paris vi nos monitores do metrô uma notícia alarmante para os meus planos: o metro e o RER não estavam passando pela Gare du Nord por causa de um incêndio. Justamente na estação onde eu pegaria o trem para Bruxelas, e eu tinha hora para chegar lá, porque a amiga da minha mãe que me receberia na sua casa iria me buscar na estação.

Chegando na estação de metrô do meu hotel, corri para o cyber café mais próximo, comprei uma hora de internet, pequei fone e microfone e fui pro Skype: liguei primeiro para a Janaína, minha amiga que me encontraria na Gare du Nord para pegarmos juntas o trem (justamente ela que costuma estar atrasada e que não fala francês), para avisá-la dos últimos acontecimentos e pedir para que fosse mais cedo para a estação, afinal o trânsito e a estação deviam estar muito confusos. Depois liguei para a Janete, a amiga da minha mãe, para avisá-la da confusão (eu suspeitava de um novo atraso nos trens). Ela me aconselhou a ir pro hotel o mais rápido possível e pegar um taxi.

Comecei indo pro hotel, pegar minha mala-menir, e aproveitei para pegar novas informações. O staff não sabia das notícias quanto à Gare du Nord, e me indicaram o metrô, daí eu expliquei o que estava acontecendo e eles me sugeriram um ônibus. Fiquei na dúvida entre o ônibus e um taxi, mas eles me convenceram de que eles demoravam o mesmo tempo pra chegar lá, com a vantagem do ônibus ter faixa exclusiva (respeitada, diga-se de passagem), o que era bom caso o trânsito estivesse ruim.

E o trânsito estava ruim, muito ruim. Ao invés dos 20 minutos prometidos pelo pessoal do hotel, demorei 40. Além disso, o ônibus estava lotadíssimo, o que é muito ruim para alguém com uma mala grande e pesada como a minha. Fora o calor e uma francesa que não parava de reclamar e de dizer que ia passar mal.

O interessante dos ônibus de Paris é que eles têm hora marcada. Tanto nos pontos quanto dentro do ônibus, onde se vê um letreiro com a próxima parada e quanto tempo falta para chegar nela. Dessa forma, pude apreciar melhor o nervosismo de ver a hora passar e o tempo de chegada a Gare du Nord não mudava! Comecei a ficar ansiosa, as pessoas a minha volta passaram a perguntar se eu ia pegar o trem (com uma mala daquelas é meio óbvio, né?). Daí começaram a perguntar que horas era o meu trem, 20:25h eu respondi. Então aconteceu algo muito engraçado, as pessoas começaram a se dividir e a discutir a minha situação, uma parte achava que eu ia chegar a tempo enquanto outra parte retrucava e dizia que isso seria impossível. Foi emocionante... até que uma jovem se virou pra mim e perguntou se eu conhecia a estação, eu disse que não, ela pediu para ver minha passagem e disse que me ajudaria a chegar na plataforma. Chegando na estação saímos juntas do ônibus, com as pessoas desejando boa sorte, e voamos escada abaixo com a minha mala (que nesse momento resolveu arrebentar a alça maior), e com a ajuda de mais um homem, descemos correndo e eu a segui esbaforida até a plataforma. O trem ainda estava lá!

Eu a abracei e beijei no rosto, dizendo que ela era um anjo que me tinha salvado a vida, peguei minha mala e fui pro trem, cheguei na porta e chequei de novo os números. Estavam errados. Aquele não era o meu trem.

Nervosa, fui perguntar para um funcionário o que estava acontecendo, e ele me disse que o meu trem estava atrasado, e que eu acompanhasse as informações no quadro de trens. Fui checar o quadro e aí fiquei mais nervosa ainda, num quadro com mais de 20 trens, o meu não estava lá! Comecei a falar comigo mesma em voz alta (a essa altura estava falando sozinha em francês) e alguém do meu lado disse: claro que seu trem não está lá, estão todos atrasados, olhe os horários! Eu parei para prestar atenção nos horários dos trens que estavam nos quadros: todos estavam mais de 2h atrasados. O meu simplesmente ainda não tinha aparecido, e pelo visto, ainda ia demorar muito.

Pelo menos fiquei mais tranquila, atrasado é melhor do que perdido. E eu tinha uma nova missão, achar a Janaína. Resolvi que ficar em frente à plataforma marcada nos nossos bilhetes era a melhor solução possível, pois a probabilidade dela ter chegado na estação antes de mim era mínima, então ela estava realmente atrasada e certamente iria direto para a plataforma. Bingo! 20 minutos depois ela chega, botando os bofes pra fora e nervosíssima, achando que tinha perdido o trem. Depois de tudo explicado, e mais calmas, fomos colocar as fofocas em dia, enquanto esperávamos nossa vez de embarcar. Chegando a nossa vez, entramos no nosso vagão e nos acomodamos, trem chique é outra coisa... parecia que estávamos num avião, foi servido até um jantar... nada como pegar uma companhia boa... o único problema é o preço, foi um dos trens mais caros que peguei na viagem.

Chegamos em Bruxelas com 2:30h de atraso, era quase meia noite, e a pobre Janaína ainda tinha que pegar um trem para Brugges. A estação estava quase fechando, o que significa que não tínhamos muito tempo, nem muitas opções de trem para ela. Com a ajuda da Janete e do marido dela, Manuel, ela conseguiu embarcar.

Depois fomos para o carro. Eu crente que finalmente estava indo para algum lugar descansar depois de toda essa bagunça, fui surpresa pela animação da Janete e do Manuel, eles me levaram para um city tour noturno: visitamos o Palais Royal, o Atomium e o museu de arte antiga e de arte moderna. Só para vê-los iluminados por fora. Só na Europa mesmo para se fazer um city tour desse gênero...

Depois disso, finalmente fomos para casa, onde a Janete ainda teve energia para me apresentar o apartamento e me explicou porque existe a diferença em francês entre "salle de bains" e lavabo. É simples, a sala de banhos não tem privada, e o lavabo não tem chuveiro ou banheira. Coisa de europeu mesmo.

E finalmente pude dormir... o dia seguinte também prometia!!