5 de maio - Mont Saint Michel

Como eu estava muito cansada por conta dos dias anteriores e o meu trem para Pontorson só saía às 9 horas, acordei um pouco mais tarde do que o costume, tomei um café razoável no hotel, que era um pouco pior e um pouco mais caro do que do hotel de Paris. Mas eu não estava preocupada com isso, só conseguia pensar na visita do dia: Mont Saint Michel, um dos pontos altos da minha viagem.
Cheguei um pouco mais cedo na estação de trem para decidir o que fazer com as passagens que estavam faltando comprar ou agendar: Rouen, no dia seguinte, e Vézelay. Por conta dos preços de ida e volta, que eu consultei numa máquina (mas que não podia comprar porque ela só aceitava cartão com chip), acabei decidindo por comprar as passagens de ida e volta de Rouen e deixar Vézelay por conta do Eurail Pass, já que não dava para reservar lugar nesse trem. Deve ter sido por causa da mistura de sono com impaciência mais uma pitada de nervosismo (porque o caixa que vendia as passagens só abria 5 minutos antes da hora do meu trem) que não fiz a escolha mais sábia. Teria sido mais barato do outro jeito. Paciência. Faz parte.
Entrei no trem e em pouco tempo eu estava chegando em Pontorson, que é a cidade mais próxima do Mont Saint Michel, que na verdade é uma ilha, logo o trem não chega até lá. A idéia era pegar um ônibus, cuja tabela de horários eu encontrei na Internet, do lado de fora da estação que me levaria até a ilha e no final do dia me traria de volta. Como tinham me avisado que seria muito provável, estava chovendo. E logo descobri que Pontorson é uma cidade no meio do nada, ela é tão pequena que é difícil chamar a estação de trem de estação. E não tem nada em volta além de casas e algum comércio de primeiras necessidades. Por conta disso, meu plano de deixar minha mochila num armário na estação foi por água abaixo, junto com a chuva que não parava de cair.
Eu não tinha muito tempo para me lamentar ou ficar procurando soluções, porque o tempo entre a chegada do trem e o meu ônibus era de 10 minutos, então o mais importante era encontrar o ponto do dito cujo fantasiada de tartaruga mesmo. Se eu o perdesse teria que aguardar até depois do almoço, o que não era uma boa idéia. Do lado de fora da estação encontrei um microônibus e um cara enorme de gordo do lado, fui perguntar pela condução até o Mont Saint Michel, e era aquilo mesmo, sem número ou indicação na frente mesmo. Depois notei que tinha uma pequena folha de papel que indicava a direção no vidro dianteiro que mal dava para ler.
De qualquer forma, aquele senhor se mostrou muito simpático, começou a me dar dicas, falando dos horários para voltar e que o tempo normalmente era ruim daquele jeito mesmo. Inclusive, ele achava que estava fazendo um dia muito ameno, nem estava chovendo tanto e a temperatura estava agradável (eu estava quase congelando!). No final acabou me perguntado de que região eu era. Ele achou que eu era francesa, veja só! Respondi que era brasileira, e ele ficou impressionado, seu francês é muito bom!
Partimos em direção à magia do Mont Saint Michel, e na verdade essa é uma viagem muito curta, chegamos lá em uns 15 minutos. Mas vou te contar, uma das coisas mais mágicas do mundo é estar na primeira fila de um ônibus daquele, olhando em direção ao mar, cheio de brumas e vir surgindo devagarzinho o Mont Saint Michel. É do jeito que eu imaginava que seria a cena de Morgana levando Artur para Avalon, com a ilha surgindo no meio da neblina. Lindo. De longe aquela ilha já te conquista e te deixa de boca aberta. Fiquei emocionada.
Fui deixada na entrada da ilha, que se manteve inteiramente medieval, de forma que nenhum veículo pode passar e a entrada é igual a de um castelo, com direito a ponte elevadiça e tudo o mais. Por conta da chuva fui antes de mais nada para o Office de Turisme, que fica bem no início da cidade, antes mesmo da ponte, para lá comprar um livreto explicativo e conseguir um mapa mais detalhado e que não ficasse manchado com a chuva. Mais detalhado eles não tinham, e depois entendi o porquê (não tem o que detalhar! É tudo minúsculo mesmo!), mas pelo menos ele continuaria legível com umas gotinhas. Saquei meu poncho do Astérix da mochila e o vesti, deixando a máquina fotográfica bem protegida debaixo dele. Estava pronta para começar a andar!
Aliás, andar no Mont Saint Michel é muito difícil. É tudo tão lindo, e tão antigo, que parece que você entrou numa máquina do tempo mesmo! A cada passo que você dá a vontade de parar e ficar embasbacado é quase incontrolável. Você acaba andando a passo de tartaruga (muito apropriado no meu caso) com o queixo caído. Tudo, absolutamente tudo a sua volta é medieval ou mais antigo, todas as casas, janelas, portas... a rua é estreita e sinuosa, nem que um carro tentasse (apesar de ser proibido) conseguiria passar, tanto que para recolher o lixo no final do dia eles usam um veículo especial, adaptado para o tamanho da única rua, e por ter de ser pequeno, o lixeiro é obrigado a fazer muitas viagens.
Tudo na cidade vive do turismo, as lojas ficam uma do lado da outra, intercaladas com restaurantes e pequenos museus particulares. As únicas coisas diferentes disso são o Office de Turisme, os correios, a polícia e a prefeitura. Tudo em casas como as demais ou instaladas nas torres de vigia das remparts (muralha medieval que circunda as cidades). A Mairie (equivalente a prefeitura), por exemplo, fica num belo arco que liga as construções internas a uma das torres.
Meu plano era subir pela rua principal e descer pela muralha, o que era muito difícil de conseguir, principalmente no início quando há mais escadas ligando a rempart à rua e você fica querendo xeretar cada cantinho daquele museu a céu aberto... Fui subindo com alguma dificuldade, e entrando nas lojas que me seduziam com seus produtos bretões e celtas, até chegar a Église Paroissiale, com uma bela estátua de Joana D'Arc na entrada. É incrível como a igreja tinha poder, uma cidade tão minúscula como aquela não se contentava com o mosteiro localizado no alto do monte, precisava também de uma igreja no meio do caminho. De qualquer forma, a Église é linda, apesar de pequena, e estava em obras. Por conta da manutenção tudo estava deslocado para cima do altar, como numa casa em plena faxina. Uma coisa muito engraçada de se ver.
Continuei subindo... até chegar à última casa/loja da rua e começar a escadaria que leva até a abadia do mosteiro. Haja escada! Ainda bem que você acaba subindo devagar para poder apreciar a arquitetura gótica maravilhosa do lugar. É tudo tão cheio de detalhes, com curvas, gárgulas, torres e janelas de tudo quanto é jeito que você nem sente que está subindo tanto. A entrada já é linda, ah, tudo é lindo, e, claro você tem que pagar para visitar, porque a abadia é quase toda aberta ao público, com direito a guias e audioguias (por uma taxa extra). Você visita tudo lá dentro, passando por salas e corredores labirínticos, jardins internos maravilhosos, e conhecendo todo o mosteiro. É uma coisa muito mágica. Não tem como descrever em palavras, e as fotos dão uma idéia muito pálida do que é aquele lugar. A cripta para mim foi um lugar particularmente emocionante, porque lá eu encontrei uma Madona Negra, era Notre Dame Sous Terre! Eu fiquei surpresa, porque minha viagem estava construída em cima dos lugares que eu sabia possuir esse tipo de Santa, que é um vestígio da adoração da Deusa Ísis, mas não tinha idéia que iria encontrar uma ali! E nesse caso, essa imagem ainda possui uma belíssima conotação, porque o ponto mais alto do mosteiro é uma estátua dourada de Miguel, representando a energia solar e etérea, masculina, e no ponto mais baixo fica a Madona Negra, representando as forças terrenas, uterinas e femininas, com a igreja principal bem no meio do caminho. Lindo! Simbolicamente perfeito!
Saí de lá flutuando, com a cabeça em outro tempo e lugar... na verdade, muito bem localizada no tempo e no lugar, principalmente nesse último! Eu estava bebendo avidamente as imagens com os olhos. Desci pelos remparts, que estão absurdamente bem conservados, e parecem um corredor que limita a cidade, separando a parte habitável do precipício que dá no mar, com vistas lindas da baía. Pena que eu não dei sorte com os horários de mudança da maré nesse dia... elas seriam ou antes de chegar ou depois de ir embora. Mas a vista era bonita assim mesmo, principalmente através das seteiras (espécie de pequenos rasgos na muralha para os defensores usarem arcos e flechas sem o inimigo conseguir acertá-los). Ali daria para ter uma aula fantástica sobre defesa militar na idade média.
Fui descendo e pensando no almoço... quando vi um restaurante de frutos do mar lotado, mas ainda tinha uma mesa vaga. Entrei e fiquei fascinada com as mesas em volta, as pessoas se fartavam de frutos do mar gigantescos! Era ali mesmo que eu comeria. Sentei e pedi o cardápio já na dúvida do que iria pedir. O garçom me entregou e foi embora. Abri com água na boca, procurando onde estavam os frutos do mar. Só tinha crepe. Como assim?, me perguntei. Chamei o senhor que estava me atendendo, eu quero o menu. Não tem mais menu. Como assim, não tem mais menu? Passou das 14h.
Eu quase gritei de raiva, eram 14:05h. Todos a minha volta estavam comendo menu, e eu não podia mais pedir. Quase levantei e fui embora. Mas me segurei, pensando comigo mesma que provavelmente aconteceria a mesma coisa em qualquer outro restaurante que eu fosse, do jeito que estava com fome era melhor ficar por ali mesmo. Tristemente escolhi um crepe, e aproveitei que estava na janela que dava para o mar para me distrair e não ficar olhando para as mesas, e conseqüentemente os pratos, dos outros. O crepe tava até gostoso, mas a frustração estava estragando ele.
Depois do crepe pedi um belo sorvete pra dar um ânimo no meu humor, que estava perigando ficar ruim. Mas foi só sair do restaurante e olhar novamente a vista das remparts que fiquei feliz novamente! Desci vagarosamente as rampas e escadas, absorvendo o máximo de detalhes possível, até chegar novamente na entrada da cidade. Como ainda tinha umas duas horas até o ônibus chegar, resolvi testar o meu auto-controle nas lojas. Aquilo é uma loucura, devia ser proibido. Se eu tivesse dinheiro e um modo de carregar, teria comprado quilos de bugigangas, lá tem de tudo: lembranças medievais, do Senhor dos Anéis (imitações em prata, ouro e esmalte do figurino do filme), dos Piratas do Caribe (armas principalmente), uma quantidade incontável de espadas, punhais, facas e muita, muita prata com motivos celtas/bretões. É interessante reparar pelos souvenires que a velha disputa de onde fica o Monte Saint Michel ainda é muito viva: Bretanha ou Normandia? Na dúvida, tem souvenires dos dois! E pra coroar isso tudo ainda tem o artesanato de Quimper, que uma louça linda de morrer... só que é tão cara que custa além dos olhos da cara, mais um braço e uma perna.
Numa das lojas aconteceu um fato engraçado, como eu estava com o meu poncho uma das vendedoras veio me sacanear: e aí, foi no Parque Astérix? E, deixe-me adivinhar, estava chovendo, né? Que sorte a sua, hein? Em outra loja vi uma vendedora japonesa, que estava lá só para atender os japoneses, é claro. São tantos que eles estão contratando vendedores especializados!
No final das contas, me surpreendi: comprei só 2 pares de brincos, um anel, um pin para minha coleção (que viria a fazer sucesso durante a viagem) e um gato de pedra com motivos celtas. Não ficou pesado, nem na mochila nem no bolso, por isso acredito que meu teste de auto-controle foi um sucesso!
Depois de umas duas voltas pelas lojas, olhei pro relógio e faltava uns 10 minutos pro ônibus chegar. Resolvi esperar por ele sentada, pois já estava cansada, e nunca vi um ônibus ser tão pontual. E, claro, era o mesmo motorista. Ainda tive que esperar um pouco pelo trem na estação absolutamente deserta e quando ele chegou, escolhi um lugar longe de todos e fui dormindo até Rennes, onde devia fazer uma conexão.
Quando o trem para Paris chegou, fui procurar minha poltrona, mas ela estava ocupada. Achei estranho e fui conversar com a garota que estava sentada ali, que me explicou que estava numa excursão com uns amigos e perguntou se eu não me incomodava. Respondi que não, que só não queria ficar mudando de poltrona o tempo todo, então queria saber onde era o lugar dela para trocarmos. Acabou sendo tudo ótimo, pois fiquei longe da bagunça da excursão, podendo tirar mais uma soneca, e depois comer o meu jantar em paz. Ah, sim, por conta da hora resolvi jantar no trem! Minha primeira experiência gastronômica sobre os trilhos!
É bem interessante o esquema, tem um vagão/bar que vende pequenas refeições: sanduíches, saladas, iogurte e alguns pratos quentes pequenos, além de bebidas. Você chega lá, pede e escolhe se quer comer de pé numa bancada ali mesmo ou se leva a comida para o seu lugar, que obviamente tem uma mesinha até bem espaçosa. Eu escolhi minha poltrona, pois não agüentava mais ficar de pé. Só tem um problema: o trem balança mais do que parece, o que te obriga e tomar conta das coisas o tempo todo, principalmente das garrafas, que escorregam enlouquecidamente pela mesa e viram para tudo que é lado.
Quando faltava uns 5 minutos para chegarmos a Paris me dirigi para a porta, e já tinha um monte de gente esperando lá. Foi então que descobri que nosso trem estava atrasado, demoraria mais uns 20 minutos para chegarmos. Era o meu primeiro trem atrasado, numa longa sucessão ainda por vir. Durante a espera um francês veio puxar papo, ele estava ansioso porque tinha um vôo marcado para Madagascar e não podia se atrasar. Foi uma conversa muito esquisita, porque ele só sabia se vangloriar de que não dormia a noite, já que trabalhava como marinheiro e por isso viajaria no meio da noite, só para não dormir. Eu disse para ele que isso não fazia sentido, mas ele entendeu como um elogio. Eu desisti e o deixei falar o que quisesse, respondendo apenas com a-hã.
Chegando em Paris, fiquei feliz de descobrir que o metrô ainda funcionava, o que facilitava a minha volta para o hotel. Quando cheguei lá já era mais de 11h da noite. Peguei minha mala na recepção e fui carregando-a sozinha para o caixão que funcionava como elevador. Tinha um hóspede esperando, mas que gentilmente me cedeu o lugar por conta da mala. Agradeci muito e fui na frente. Chegando no meu andar descobri que o tal hóspede na verdade era meu vizinho. Nos desejamos boa noite e eu fui conhecer meu novo quarto.
Ele era pequeno, muito menor do que o anterior, que eu dividi com o Caike, mas pelo menos o telefone funcionava direito. Eu também não tinha tempo para ficar reclamando. Dei um jeito de encaixar minha mala perto da janela, e fui lavar roupa. Só que era tanta coisa para lavar que quando deu meia-noite e meia o meu vizinho tão simpático veio reclamar do barulho. Pedi desculpas e deixei para lavar o resto no dia seguinte, se sobrasse tempo.

4 de maio - Rennes - o segundo começo

Acordei cedo, com o Caike saindo do quarto para pegar o translado para o aeroporto às 4:30h da manhã. Depois que ele foi embora não consegui mais dormir. Agora a minha viagem sozinha estava começando e o nervosismo bateu de verdade. Um monte de coisas que as pessoas tinham me perguntado sobre viajar sozinha estavam me atormentando... resolvi que era melhor tomar um banho bem quente, deixar tudo pronto e cochilar até a hora de sair.
Acordei o mais tarde possível, deixei a mala gigante e a sobra do vinho no saguão do hotel mesmo, e levei o café da manhã comigo para comer no trem, que saía às 8:05h e levava pouco mais de 2h para chegar em Rennes. A idéia era dormir em Rennes nesse dia, no dia seguinte ir pro Mont Saint Michel e voltar a Paris à noite, de forma que uma mochila com uma muda de roupa seria o suficiente, o resto me esperaria no hotel, onde eu ficaria nas 2 noites seguintes, até a próxima viagem de longa distância.
Tudo resolvido, peguei o metrô e fui para a Gare Montparnasse. Como era a minha primeira viagem, perdi as setas dentro do metrô que levavam direto para a estação, e acabei saindo no meio da rua deserta. Olhei em volta e vi uma placa que indicava o caminho para a estação. Comecei a andar naquela direção, mas meu instinto estava afiado e eu senti que tinha algo errado. Vi um gari e resolvi perguntar, e ele me deu outra direção. Resolvi confiar no parisiense laranja.
Ele estava certo e acabei encontrando a estação, que é enorme! Tem diversos terminais, cada um para determinadas cidades... procurei por Rennes e lá estava o meu terminal. Por precaução eu estava com tempo sobrando e me sentei para esperar o trem chegar. Quando faltavam apenas 15 minutos desci para minha plataforma para xeretar, porque me intrigava saber como achar o meu vagão no pouco tempo que o trem ficaria na estação. Logo percebi que na plataforma tinha um quadro com um trem iluminado e cheio de números, cheguei mais perto e vi que lá tinha o trem com os vagões e eles ficavam localizados nos seus respectivos "repères", uma espécie de subdivisão da plataforma justamente para facilitar a vida dos passageiros. Achei fantástico! Fui para o meu "repère" e na hora exata o trem chegou. Eles são pontuais mesmo quando não se atrasam, impressionante. Subi e fui para a minha poltrona na primeira classe, que parecia mais confortável que a da segunda classe que eu vi de passagem no outro vagão. Sentei e comecei a tomar o meu café: pequenos sanduíches de queijo fortíssimo, que deixaram a minha mochila fedida quase ao insuportável.
A vista do trem do caminho para a Bretanha é belíssima, e muito parecida com a do avião, com muito verde, pequenas fazendas, aqueles cata-ventos enormes para captar energia eólica e micro cidades, daquelas que eu aprendi na Aliança Francesa que são abundantes na França, com apenas umas duas dúzias de casas e uma igreja, normalmente desproporcional ao tamanho do lugar. Entre uma micro cidade e outra, aproveitei para dar pequenos cochilos, até que anunciaram a estação final: Rennes.
Eu estava munida de um pequeno mapa tirado do site do ofício de turismo da cidade, que tinha algumas ruas do centro histórico e a localização da estação de trem. A primeira coisa que fiz foi tentar arranjar um mapa melhor na estação, no que não dei muita sorte, porque se o meu mapa era ruim de ler, aquela xerox que me deram era muito pior. Mesmo assim fiquei quieta ao recebê-lo e aproveitei para perguntar onde ficava o meu hotel, bem em frente à estação foi a resposta. Animada, saí e fui à procura! Não achei o hotel na praça onde ele devia ficar... achei estranho, como o rapaz na estação sabia onde ele ficava, eu tinha certeza de que o hotel existia. Entrei numa rua e comecei a procurar... até que me convenci de que não era a melhor tática a adotar. Voltei pra praça decidida a procurar de novo. Vi um hotel com um nome parecido com o meu, mas era diferente. Resolvi entrar e perguntar. Era ali mesmo. Não entendi nada, como um hotel pode ter um nome na Internet e outro na fachada? Mas eu não ia ter essa discussão filosófica com o recepcionista. Deixei a mochila no quarto e fui com o meu casaco/mochila bater perna. Mas antes tive que fazer uma parada estratégica no banheiro, porque meu intestino nunca tinha absorvido tantos lactobacilos em tão pouco tempo... era o efeito colateral dos queijos franceses. Saindo do hotel aproveitei para no caminho pegar um mapa decente na recepção!
Fui em direção ao centro histórico da cidade e fiquei meio desanimada, Rennes tinha cara de subúrbio moderno. Nada de realmente interessante, com ruas e avenidas largas para uma cidade medieval. A Rue de Janvier, que segundo o meu mapa, dava no centro, é cheia de lojas bem novas e mais sofisticadas.
Entrando na Rue Toullier, a primeira do meu circuito, me encontrei no verdadeiro centro histórico, e aí sim Rennes me conquistou com suas casas de madeira, construídas dessa forma desde o século XIV até o XIX. A única coisa que logo ficou evidente, e confesso que me deixou chateada, é que estava tudo, absolutamente tudo, fechado. Era domingo, e até os restaurantes menores não abriram. Aquilo parecia mais uma cidade fantasma, com pouquíssimas pessoas na rua. Uma desolação, ainda mais para o meu primeiro dia sozinha.
Para elevar o espírito, entrei na primeira igreja do meu circuito, Église de Toussaints (Todos os Santos), que estava em plena missa. Para não atrapalhar as pessoas, dei uma volta pela nave bem discretamente, evitando as capelas próximas do altar, e tirei apenas uma foto de uma estátua no fundo, perto da porta principal, para não incomodar ninguém. Confesso que depois de tudo o que eu havia visto em Paris, essa igreja não me impressionou.
De lá segui por outras ruas estreitas e tortuosas, todas de pedra, uma mais curiosa que a outra, até chegar no limite do centro histórico, onde há um templo protestante, e o culto tinha acabado de terminar e as pessoas estavam saindo. Continuei pelo meu circuito e passei em frente ao mercado popular, que estava vazio, com muita coisa fechada, e a pequena parcela de vendedores que estavam trabalhando em nada se diferenciavam daqueles da Cobal do Humaitá.
Continuei caminhando até a Place de la République, essa sim digna de nota. Nela fica o Palais du Commerce, uma construção muito grande e bonita do século XIX, com umas arvores plantadas em caixas quadradas na frente, que são muito comuns na Europa (desconfio que são laranjeiras, mas não tenho certeza, pois nos castelos elas são plantadas assim).
De lá entrei no mundo do Senhor dos Anéis, na Rue de Rohan (até tirei uma foto para comprovar!), que é onde começa mesmo a cidade velha, que fica no centro do centro histórico, onde você volta a andar por ruas estreitas, apenas com casas de madeira e chão de pedra... uma coisinha linda! Pena que a praça do Calvário estava em obras... mas logo se percebe que sempre tem algo em obras nos países desenvolvidos... lá elas nunca terminam, pois sempre há algo para melhorar e eles não deixam para depois, além de que é na primavera que se consertam os estragos provocados pelo inverno.
De lá peguei uma outra rua repleta de charme, uma das mais bonitas de Rennes, a Rue de Saint Yves, onde fica a antiga Chapelle Saint Yves, que hoje é o ofício de turismo da cidade. A pobre capela está tão destruída e desfigurada que a visita vale mais pelas informações turísticas do que pela visita. Aliás, essa área toda é uma coisa fora de série, depois dessa rua tem mais uma que também é linda: Rue des Dames, que dá na principal igreja da cidade, a Catedral de Saint Pierre, que quando eu cheguei estava fechando para o almoço, só abrindo três horas depois, num dos intervalos para almoço mais longos que já vi, só na Espanha é pior. Eu ainda não sabia disso, mas foi muito providencial ter deixado essa igreja para visitar por último, na hora fiquei um pouco chateada, mas ainda tinha muita coisa para ver e por isso segui em frente, sem dar tempo para lamentações.
De lá, segundo o meu mapa, tinha as Portes Mordelaises para visitar. Eu não tinha idéia do que se tratava, imaginei arcos medievais para se passar no meio ou numa praça. Continuei andando e continuei sem saber o que eram essas portas, tudo o que vi foi um castelo medieval com um belíssimo jardim florido na frente. Hoje, procurando no Google descobri que o tal castelo é a Portes Mordelaises... que nome mais inapropriado.
Perto do castelo fica uma praça simpática, mas com muita cara de Paris do interior, a Place du Bas de Lice, que é sem graça se comparada com outras partes de Rennes, porém, inesperadamente, ao lado dela tem outra praça, essa sim imperdível! É a Place Saint Michel, que é um point da cidade, juntamente com a sua continuação, a Place du Champ Jacquet! São duas praças cercadas de ruas, com tudo lotado de bares e restaurantes. É engraçado ver como a Bretanha respira o passado, tentando passar uma imagem às vezes mais medieval e fantástica do que a realidade. A quantidade de pubs e restaurantes com nomes que lembram a lenda Rei Artur ou até mesmo o Senhor dos Anéis é assustadora. Chega a ser difícil encontrar um lugar com um nome "normal".
Como ainda estava cedo e eu estava adiantada no meu circuito turístico, resolvi mudar o caminho e explorar para fazer hora. Entrei na Rue des Innocents (para quem gosta de Anne Rice é uma referência interessante para o Cemitério Les Innocents, que chegou a existir mesmo em Paris e... bom, isso faz parte de uma outra história que será contada mais a frente na viagem. Foi nessa área que achei uma loja que oferecia Internet! Bom, não era uma lan-house, e sim uma mercearia misturada com bar, numa casa histórica e administrada por árabes. Aliás, como tem árabe em Rennes! Os computadores, apenas 3, ficavam nos fundos, tudo muito empoeirado e com uma Internet lenta de doer. Mas eu tinha que mandar notícias para a minha mãe e buscar novidades do Caike, então me conformei e acessei rapidamente meus e-mails. Bom, rápido em termos, né? De qualquer forma, foi a Internet mais barata que vi na França, pois os vendedores marcavam eles mesmos o tempo de conexão, e como ficavam batendo papo (em árabe) o tempo todo com os fregueses árabes também, não estavam muito preocupados com o tempo que você passou no computador, contando bem menos tempo do que a realidade. O que no fundo, foi justo, dada a lerdeza da conexão e do computador em si.
De lá entrei na Rue de Saint-Louis e fui para uma praça fora do meu circuito, a Place de Sainte Anne, que estava deserta. Lá tem uma igreja muito linda, a Église de Sainte Anne, que, para minha surpresa, é uma das mais bonitas de Rennes! Para meu desconforto, havia um grupo de quase bêbados sentados na escadaria, e assim que cheguei um deles foi logo avisando que a igreja estava fechada, e outro logo retrucou que não, ela estava aberta. Começou uma pequena discussão entre os dois enquanto um terceiro me aconselhou verificar pessoalmente, e, graças a deus, ela estava aberta e eu entrei rapidinho.Pra variar, a igreja é tão alta que quase chega a dar vertigem quando se olha para cima, e e toda branca por dentro. O transcepto é coberto quase até o teto de placas de agradecimento por milagres de Santa Ana, uma coisa emocionante!
Saí de lá animada, e me despedi dos bêbados nas escadas, saindo um pouco mais rápido do que o normal, pois eu estava sozinha e a praça vazia, não queria arriscar... fui até a Place de Hoche, que é bem bonita também, mas sem nenhum marco importante, e entrei na Rue Saint Melaine, onde, adivinha, tem mais uma igreja chamada, adivinha de novo, Église de Saint Melaine. São coisas que eu não consigo entender, essa igreja bem mais acabada e feia, apesar de ser um monumento histórico de importante, está no circuito turístico, mas a Sainte Anne que é bem mais bonita não está. Não faz sentido pra mim... mas enfim, essa é uma igreja que vale pela sua importância como monumento histórico (afinal ela data do século XI) e pela torre que é muito bonita, de estilo romano. Por dentro, ela é austera demais, ficando bem sem graça, fora que seu estado de conservação não é dos melhores.
Saindo da igreja e entrando na Rue du M. Guillandot, você vê na esquina du Rue Gambetta (aparentemente uma via bastante importante da cidade) a piscina municipal. Outra coisa de país desenvolvido: piscina pública de qualidade. A entrada tem ares de art nouveau, mas o estilo é outro que eu desconheço, e é muito bonita, com jardins nas laterais. Também não está no circuito, mas vale passar na porta para dar uma olhada.
De lá peguei a Rue Saint Georges, que te leva novamente para a cidade medieval, e tem algumas das casas de madeira mais lindas da cidade, com suas vigas de madeira entalhadas lindas... muitas contando histórias de santos. Uma das que eu vi pela cidade tinha o martírio de São Sebastião, com ele amarrado numa viga enquanto na outra viga ao seu lado mostrava o arqueiro. Tudo bem pintado e bem conservado, uma beleza.
No final da Saint Georges fica mais uma igreja, a Saint Germain, que infelizmente estava fechada, para meu azar ela só abre uma vez na semana, e não é aos domingos. Então segui em frente e fui até a Place du Parlement de Bretagne, que é muito bonita, com um belo jardim à frente do Parlamento, que já é por si só um espetáculo a parte, com a sua imponência, e um interessante relógio de sol no centro da fachada.
Essa área é, na verdade, repleta de prédios públicos, pois bem perto fica a Place de la Mairie, que é no mínimo curiosa. Se trata de uma praça onde, obviamente, fica a prefeitura, e consiste numa praça de tamanho bastante razoável com um prédio de cada lado, sendo que os eles se encaixam um no outro, isto é, um tem a entrada saltada para fora da fachada num semi-círculo, enquanto o outro tem a fachada num semi-círculo só que para dentro. Pra variar a praça está cheia de árvores plantadas em caixas.

Pensamento aleatório, mas nem tanto: o francês é mesmo metódico, acho que eles preferem manter as pobres árvores assim não só para controlar o seu crescimento mas também para facilitar a sua locomoção de um lugar para o outro e dessa forma poder mudar os jardins a seu bel-prazer sem ter de esperar as árvores crescerem de novo.

Nesse momento cheguei a conclusão que era melhor parar para almoçar. Então peguei meu mapa, e depois de percorrer algumas ruas, voltei a Place du Champ Jacquet. Estava tudo deserto, apesar de ser plena hora do almoço, escolhi uma creperie, e finalmente descobri o que é raclette!! Imagine um crepe, só que a massa é apenas de queijo crocante, isso é uma raclette. Em outras palavras, é uma iguaria culinária! Só tem um problema, dificilmente dá pra comer mais de uma, mas também não segura a fome por muito tempo. Além disso, como rapidamente eu descobri, não segura muito o vinho. Apesar de ter tomado apenas uma taça, saí do restaurante tontinha. Por conta disso dei mais uma voltinha na Place Saint Michel até conseguir achar o caminho para a Place Rallier du Baty, que também é um point da cidade, e possui um muro do século XV que é um prolongamento de um muro ainda mais antigo, da época galo-romana. Incrível como essas coisas surgem no meio das cidades na Europa... a presença da história é quase opressiva!
Segui então por mais umas ruas (R. du Clisson, R. de Mont Fort e R. du Chapitre) à cata de mais casas lindas de morrer, com suas vigas de madeira entalhas e coloridas, na verdade, é facílimo de achar essas construções em Rennes.
Finalmente eu estava de volta a Église Saint-Pierre, que deve mesmo ser visitada no final, pois tão muito linda que deixa a todas as demais no chinelo. Ela parece um palácio por dentro, com uma quantidade quase incontável de pinturas nas paredes e no teto, este último é todo dividido marcando as "molduras". Muito bonita mesmo. De estilo neoclássico, essa igreja do século XIX é uma das mais novas da Bretanha, e sua colunas internas são todas de mármore amarronzado, combinando com a pouca luminosidade do local.
Saindo da igreja peguei a Rue de la Monnaie, que também é cheia de casas lindas, e fui andando por um pequeno labirinto formado pelas ruas Sant Guillaume e Saint Sauveur, onde achei mais uma igreja, chamada, você só tem uma chance, Église Saint Sauveur. É incrível como Rennes tem igrejas... Enfim, entrei, e me surpreendi, por mais que ela parecesse sem graça por fora perto de todas as outras da cidade, ela é uma das mais bonitas por dentro, rivalizando com a Saint Pierre.
Foi nessa igreja, na verdade, uma basílica, que algo muito entranho aconteceu. Eu estava dando a minha volta pela nave, admirando as esculturas, vitrais e a arquitetura quando uma velhinha de cabelos completamente brancos e olhos profundamente azuis chegou perto de mim e perguntou: o que você está procurando? Ela me pegou totalmente sem guarda com essa pergunta. De repente comecei a pensar, bom, essa minha viagem parecia mesmo uma procura, mas não sabia bem do quê. Eu a tinha planejado de forma que parecia uma espécie de peregrinação, mas não consegui achar uma razão ou um objetivo nisso. Como eu fiquei calada e demorei a responder que, bom, eu estava ali de turista, ela perguntou de onde eu era. Respondi que era brasileira, no que ela replicou que o meu francês era muito bom (fiquei tão feliz!) e que eu lembrava uma amiga dela que também era do Brasil, que tinha vivido em Rennes alguns anos antes de voltar para os trópicos. Nisso ela indagou se no Brasil as pessoas eram católicas, eu disse que o país era muito católico sim, o que não deixa de ser verdade, o que a deixou muito contente e ela se animou: você sabia que aqui houve um milagre? É mesmo? Sim, no século XVI Maria apareceu ali (e ela me levou para o local dentro da igreja) e falou com as crianças que estavam rezando que os ingleses estavam se aproximando, as crianças contaram para todos e por conta disso a cidade teve tempo de se preparar para o ataque, que ocorreu uma semana depois e, claro, foi rechaçado. Nisso ela perguntou se no Brasil também havia aparições de Maria, e eu lhe disse que sim, que já tinha ouvido falar de algumas, o que a deixou feliz.
Fiquei meio abismada com a tal história e com o fato daquela senhora simpática estar me contando isso, assim, meio sem razão. Ela ainda me levou para um balcão ao lado da entrada e me entregou o folheto explicativo com a história da basílica (coisa muito comum na Europa, esses panfletos, e normalmente eles têm um preço simbólico de 1 ou 2 euros), eu lhe disse que estava sem dinheiro para pagar por ele, mas ela disse para não me preocupar, era um presente dela. Fiquei feliz e lhe agradeci muito, ela sorriu e perguntou o que eu tinha achado da igreja, respondi que era uma das mais bonitas da cidade, o que ela gostou de ouvir. Então saímos e ela indagou quanto tempo eu ficaria ali, lhe disse que infelizmente era só por um dia, pois eu estava rodando a França, ela ficou impressionada e perguntou aonde mais eu iria, e minha resposta a agradou muitíssimo, apesar dela achar que eu devia ver mais a Bretanha, e que tinha certeza de que eu iria adorar o Mont Saint Michel no dia seguinte.
Nos despedimos ali, e eu resolvi procurar um lugar para jantar. Aquela raclette não tinha sido o suficiente. Rodei novamente todo o centro histórico, à cata de um restaurante, mas ainda estava tudo fechado, com cara de que não ia abrir mesmo, apenas um pub ou outro estava aberto, mas eu queria um prato de verdade, não beliscos. Enquanto eu dava voltas cheguei a cruzar mais algumas vezes com a senhora da igreja, que sempre sorria e dava um leve aceno.
Resolvi que era melhor tentar no Av. Jean Janvier, aquela mais moderna que eu tinha visto de manhã, e dessa forma eu ainda estaria mais perto do hotel, o que era bom, pois minhas pernas estavam reclamando muito. Finalmente entrei num hotel que tinha um belo bistrô na entrada e comi uma salada simplesmente divina de peixes defumados, com um delicioso chá de caramelo (que eu tinha aprendido a apreciar no Japão) para acompanhar. Foi ótimo, comi saboreando cada pedaço enquanto tentava entender a conversa incompreensível de um grupo americano que mais pareciam rappers numa mesa próxima. Acabei desistindo e terminei aquele jantar maravilhoso. Voltei para o hotel e fui dormir cedo, estava cansadíssima e o dia seguinte seria longo, muito longo.